Opinião
Adicto hiperbólico
“Um vício não se abandona, troca-se por outro” – ouvi este veredicto em 2007, em tom de aviso partilhado pela voz de Joaquim de Almeida, que então interpretava a personagem Mouros. Realizado pelo cineasta português António-Pedro Vasconcelos, o filme Call Girl apresentava-nos um policial maroto, protagonizado por Ivo Canelas e Nicolau Breyner, este último na pele de Carlos Meireles, um autarca burguês e lascivo que não sabia resistir aos sussurros de prostitutas de luxo com a aparência de Soraia Chaves.
É possível que nem todos se recordem do filme, que, definitivamente, não ficou nos anais da história do cinema… a narrativa não era irrepreensível, o suspense não era fantástico e – pior – o trunfo “Soraia Chaves em ação” ficava-se pela promessa anunciada, mais do que pela concretização dos meus desejos adolescentes.
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Porém, o conselho ficou-me gravado na memória: os vícios substituem-se, mas continuam a ser o que são, vícios. Mudam, transformam-se e reciclam-se. Ainda assim, não deixam de ser vícios.
Tendo a concordar com a ideia.
Primeiro, porque, contemplando a fauna humana em meu redor, constato que não encontro, de facto, uma única pessoa sem resquício de vício. Seja ele – o vício – em trabalho, desporto, férias, café, açúcar, ou heroína… não importa. Todos têm o seu pequeno ou grande vício, independentemente da sua categoria ou escala.
Segundo, porque a ideia de que todas as pessoas têm vícios apazigua a minha culpa pelos meus próprios vícios. Afinal de contas, é sempre bom saber que não estou sozinho nisto.
Finalmente, em terceiro e último lugar, a noção de que é possível substituir um vício mau por outro vício menos mau consegue ressuscitar o meu otimismo e esperança na Humanidade.
Confesso… não se trata apenas da Humanidade… eu próprio tenho vários vícios.
Em mim, espírito propenso à compulsão, os vícios formam-se rapidamente, sem respeitar cautelas e moderações sugeridas pela razão de quem conhece as virtudes do controlo. O que começa por um entusiasmo pueril na exceção prazerosa, rapidamente se transforma num impulso autofágico que transcende a minha consciência e vontade.
Viciado em vícios desde há muito tempo, fui sobrevivendo, procurando encontrar a receita que equilibrasse a natureza imperfeita das minhas ações. Qual equilibrista a dançar na corda bamba, consegui, por todos os meios, gerir as tensões entre cada adição, enquanto o maior de todos os meus vícios perturbava as harmonias que se iam construindo.
O maior de todos os meus vícios, adianto, é o vício em hiperbolizar.
Eu sou dos que hiperboliza… hiperbolizo muito e a toda a hora… hiperbolizo bem e com força… hiperbolizo como se não houvesse amanhã. Viciado na hipérbole, hiperbolizo todos os outros vícios, num círculo vicioso que me deixa ainda mais contaminado por esta psique viciante.
E o maior problema neste vício de hiperbolizar é que, muitas vezes, quando encaro os meus outros vícios, não consigo discernir se se trata efetivamente de vícios ou se são apenas maus hábitos que a minha tendência para a hipérbole acaba por demonizar. “Serão mesmo vícios ou é o meu ímpeto hiperbólico a falar mais alto?”, questiono-me, desesperado.
Talvez “desesperado” seja um termo exagerado, um adjetivo amplificado pela minha adição mais destrutiva. Aquela que revive vícios e vicia vidas. Hipérbole, deixa-me lá um bocadinho em paz… não tenho vida para tantos excessos!
OPINIÃO I BERNARDO NETO PARRA
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