Opinião

Adélia e tanto Camões

Notícias de Coimbra | 3 meses atrás em 07-07-2024

O que fazem as poetisas? Atribuem nomes e formas às coisas inanimadas. Falam de coisas sublimes sem parecer entediada com a simplicidade dos acontecimentos quotidianos. De braços abertos à liberdade e de joelhos em oração, as palavras da poetisa brasileira Adélia Prado, Prémio Camões 2024, são como comer uma fruta doce/madura. 

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“Bagagem” é o que representa o encantamento de uma vida inteira dedicada às palavras, é o primeiro livro de Adélia Prado, e foi, também, o primeiro a ser editado em Portugal. O livro que fala da sua devoção a Deus, à mulher e à humanidade. Assim é a poesia de Adélia, uma escritora “descoberta” por Carlos Drummond de Andrade que dela dizia: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo (…)”. E em homenagem ao poeta Drummond, dedicou-lhe “Com licença poética” a poesia que abre o livro. “Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada.” (…).

Em 1976, “Bagagem” é lançado no Rio de Janeiro, com a presença de pessoas ilustres e amigos, como Antônio Houaiss, Raquel Jardim, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino Kubitschek, Affonso Romano de Sant’Anna, Nélida Piñon e Alphonsus de Guimaraens Filho, entre outros.

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Adélia, a menina que dá conforto às palavras, nascida no século XX num dezembro quente de 1935. A mulher de filosofia que conta histórias em verso e prosa, encanta os passarinhos na sua terra de calmaria profunda, Divinópolis, onde é divino nascer e permanecer, no estado de Minas Gerais, onde o mineiro Drummond também, esteve presente como amigo e admirador da sua obra.

Sabe-se que não há perfeição isenta de dor e lágrimas, mas há um poema intitulado “Dona Doida” que apresenta a perfeição de um destino não calculado, mas previsto nas palavras que inquietam a alma. “Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso / com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora. (…) Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema, decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos. Fui buscar os chuchus e estou voltando agora, trinta anos depois. Não encontrei minha mãe. A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha, com sombrinha infantil e coxas à mostra”.

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Quando Deus castiga Adélia e tira-lhe a poesia, a pedra é vista como pedra, e o mundo se assemelha aos deuses. Navega de a sol a sol sem desejar o impossível, com as marés conduzindo-a ao sul, na temperança de um mar constituídos de palavras e coragem, numa épica história de fé e humanidade.  

O Prémio Camões é um dos maiores da literatura lusófona, e homenageia o maior escritor português da História da Língua Portuguesa, Luís Vaz de Camões. Que consagra em 2024 uma das poetisas vivas mais presente na literatura brasileira, e com a licença poética que confere a Adélia, o soneto mais conhecido de Camões, seria “um contentamento mais contente”, que no seu quingentésimo aniversário é evocado pela mestria de sua obra Os Lusíadas. 

Fazer poesia não é como cortar a cana, é produzir o canavial sem a intenção de que a colheita seja uma completa doçura. Se com as palavras se fazem as guerras, também, com elas se pode declarar a paz. Como uníssono, Camões e Adélia Prado pertencem à natureza etérea.

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