Opinião
As chuteiras e os pontas de lança assinalados
Adoro futebol. Acredito mesmo que havia tanta arte no pé esquerdo de Maradona como num quadro de Caravggio ou que a rebeldia de Cruyff foi tão inspiradora quanto a de Bukowski. É por isso que posso dizer que estamos a entrar num dos períodos que me são pessoalmente mais penosos ultrapassar: uma grande competição internacional de futebol em que Portugal está presente.
O mais difícil é sobreviver ao marketing. Como pode uma palavra inglesa ser o mote para tanto fervor patriótico nesta ponta da Europa é algo que, por mais vezes que aconteça, não deixa de me surpreender, mas aqui estamos nós: não há nada mais português do que assistir aos jogos da Seleção Nacional no serviço ‘daquela’ empresa de telecomunicações, bebendo ‘aquela’ cerveja ou ‘aquela’ marca de refrigerantes, de preferência depois de ter feito uma aposta ‘naquela’ plataforma online. Mas só se formos clientes ‘daquela’ empresa de energia.
Claro que, em muitos destes casos, estamos a falar de multinacionais para quem não podia ser mais indiferente se a festa do novo campeão da Europa vai ser feita no Marquês de Pombal, nos Campos Elísios ou na Porta de Brandemburgo, mas nem assim o marketing se coíbe de jogar todas as suas cartadas, da euforia partilhada ao sentimento de culpa. A marca de equipamentos da equipa da Federação Portuguesa de Futebol é, aliás, particularmente liberal na sua interpretação de patriotismo, fazendo coincidir frequentemente lemas na língua do seu país de origem com homenagens aos Descobrimentos. Give new worlds to the world, indeed!
Entre a miríade de campanhas publicitárias que já poluem o nosso consciente e subconsciente nesta altura de Campeonato da Europa, causa-me especial urticária aquela que – com direito a versão adaptada de tema de sucesso do pop/rock luso – diz que não é preciso gostar de futebol para gostar de Portugal. Agradeço a informação, mas fico pensativo.
Desde logo, porque o meu cinismo leva-me a crer que é até bastante útil não perceber de um largo conjunto de assuntos para aderir ao patriotismo cego que o marketing me quer vender. Mas também porque, em sentido inverso, falho em conseguir ver a razão por que gostar de futebol pode fazer aumentar o amor pátrio: os norte-americanos estão no topo dos países com maior orgulho nacional no mundo e são tão maus no futebol que tiveram de dar esse nome a um desporto que é, basicamente, râguebi com capacetes esquisitos e enchumaços.
No entanto, tenho de reconhecer que o chavão «Não tem de saber de [inserir assunto] para gostar de Portugal» encontra tração noutros campos. Na política, por exemplo, o atual primeiro-ministro anunciou recentemente o apoio à candidatura a um cargo europeu do seu antecessor recorrendo ao mesmo raciocínio. Ainda assim, pergunto-me onde está o limite… Não é bom português quem não quer António Costa como presidente do Conselho Europeu? Ou quem entende que não é por falar inglês com uma espécie de sotaque das Beiras que António Guterres se transforma magicamente num grande secretário-geral da ONU?
E na cultura, quem nunca assistiu a um filme inteiro de Manoel de Oliveira é mesmo português? Temos de ver todos os episódios de “Investigação Criminal: Los Angeles” por causa da Daniela Ruah? Se alguém falar de Pedro Chagas Freitas como um bom nome para Nobel da Literatura, é antipatriótico dizer «Nunca ouvi tamanho disparate»?
Mas claro que vou ver o Europeu. E, desligando a televisão durante a publicidade e tirando o som para não ouvir os comentários de entusiasmo injustificado de jornalistas e comentadores, talvez até consiga torcer pela vitória de Portugal. Até porque não preciso do marketing para isso.
OPINIÃO | PEDRO SANTOS- ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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