Opinião
Sou caipira, rural, como soi dizer-se!
Sou caipira, canta Elis Regina, um caipira tomado no português do Atlântico Sul do nosso rural. E que raio é isso de rural?
É beber um branco de Sicó e trincar um naco de Rabaçal, numa das tascas que pontuam os caminhos de Fátima e de Santiago na serra, um regalo. Melhor ainda se formos por Soure e houver enguias fritas. E se em Miranda do Corvo a cabra for velha, como o tinto onde estufa durante 14 horas, somos prazenteiros. E se, para esmoer, subirmos ao Buçaco, caminharmos pela cumeada ao Caramulo e subir a Malhapão, por entre os aromas da urze e dos pinhais, para degustar um cabrito do monte, felizes. E portentosamente felizes se pelo caminho encontrarmos uma aguardente dessas boas, clandestina que os senhores de Lisboa não deixam os lavradores ganhar a vida, então somos incomensuravelmente presenteados.
Ou passear pelos campos de arroz do Mondego. Prestamos serviços ambientais de alto valor acrescentado, que o país não paga e nos destrata. Vejam a democracia, coxa pela igualdade. Votar em Bragança, vale menos do que sufragar em Lisboa.
Adiante, vivemos na natureza, caminhamos em veredas, o automóvel queixa-se dos buracos nas estradas, pagamos portagem e o comboio é coisa de litoral. Por isso, porque trabalhamos aqui, mesmo que o patrão sejam as grandes empresas da capital, somos rurais. Lentos.
Antes isso a “um naco de carne com batatas gratinadas”, servido em louça de monograma gravado, apregoando indecências, insultos a quem, por acaso como eu na geografia pátria, também sou oriental.
Mas faz sentido, afinal, “fidalguia sem comedoria é gaita que não assobia”.
Do resto, do que importa a este país riscado ao meio por indecentes e traiçoeiros governantes, maquiavélicos e sofisticados, apenas me importa a luta que vai pelo Supremo, onde teremos, mais uma vez, na hierarquia da República Portuguesa, procuração.
Uma golpada sinistra. É isso que me preocupa, a preservação em banho-maria do inócuo para, mais tarde, fazer estrugido.
Rurais sim, porque falta cumprir Abril, no que ao desenvolver nos toca.
Pedras soltas no caminho, estradas esburacadas, desinteresse e manifesto abandono.
Levaram tudo. Correios, escolas, posto médico, finanças, bancos, conservatórias.
E o que temos, é feito com o nosso suor.
Vamos ali a Belmonte, onde as obras de consolidação da Torre de Centum Cellas e o centro interpretativo, entretanto inaugurados, só foram possíveis com fazenda municipal. Um monumento nacional esquecido, proscrito, uma torre única, a que tivemos de deitar a mão.
Rurais, com orgulho e mágoa. Não nos ligam nenhuma, o tal desenvolver. Agora, depois de enxamearem o país com alumínio, propõem-se instalar uma central fotovoltaica flutuante em Cabril, em Pedrogão Grande, que ainda nem os restos de mato retiraram da beira da estrada.
Rurais com eucaliptos de três folhas e barragens que colocam a energia em mínimos e a pintam de verde.
Estamos assim, ruralizados, silenciados; só falta cancela para que estes rurais, que já vivem nos territórios de baixa densidade, passem a viver no couto de caça dos senhores doutores.
Ele há declarações infelizes, mas ter esta sobranceria com um país que se fez, precisamente, por feitores e quinteiros, diz tudo da ignorância. E da vontade de incluir esse megafone interessado no caos e que se infiltra a todo o gás no nosso país. Escassa cultura democrática que não censura impensáveis declarações.
E agora, se não se importam, vou ali a Ferreiros, em Anadia, trinchar uns negalhos e ver se encontro Baga velha, capaz de me saciar esta ruralidade que tanto me honra. A geografia e a vida, cumprida a sol gasto em horas de suor.
OPINIÃO | AMADEU ARAÚJO – JORNALISTA
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