Opinião
Zé, ganhámos!
Zé,
(Desculpa não te tratar por “Avô”, mas se o meu pai se permitia chamar-te “Zé” e tu gostavas, também me julgo merecedor de igual familiaridade.)
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Eu sei que não nos conhecemos bem, mas hoje apetece-me falar contigo. Atenção: a culpa de não sermos mais íntimos é tua, não é minha! Ninguém te mandou morrer tão cedo… Estivesses tu mais tempo por aqui e acho que poderíamos ser mesmo bons amigos, companheiros de longas e cúmplices conversas.
Mas não foi assim. Bazaste — Zé, avisa-me sempre que eu trouxer léxico que não seja do teu tempo. “Bazaste”, caso não saibas, significa “saíste”. — e eu tive de me contentar com as últimas imagens que guardo de ti. Só podendo recorrer a essas poucas memórias, fui construindo o teu retrato com a acumulação de histórias contadas pela avó, pelo meu pai ou pela minha tia.
A tela foi-se compondo enquanto se multiplicaram os testemunhos de quem te era mais próximo. Estes retratam um bancário empedernido, um sindicalista aventureiro, de mau feitio, para quem a ameaça da PIDE nunca foi suficientemente paralisante.
Contam a história de um comunista convicto, militante, estudante pouco estudioso, que se deixou contagiar pelo entusiasmo bolchevique que prometia o ideal da igualdade libertária. Um homem que pensava sobre o país e o mundo, que conhecia o passado e perspetivava o futuro, umas vezes no papel de rebelde revolucionário, outros, paradoxalmente, na pele de um ortodoxo conservador. Um clandestino corajoso, disposto a morrer por uma causa – uma singularidade muito rara por estes dias, Zé.
Estas histórias sobre ti são reforçadas pelos livros que acumulaste e que continuam, todos, no escritório, o mesmo escritório desarrumado, onde convivem com o pó e as fotografias do teu tempo. Mas esse tempo acabou e, agora, é altura
de viver o meu tempo, pacificado com a realidade de que os nossos tempos se deveriam ter cruzado durante mais tempo.
Ora, Zé, agora é tempo de te dar novidades… Tenho boas e más notícias para ti que, ausente desta terra há algum tempo, estarás sedento por saber as últimas.
Vou despachar já a má notícia: o comunismo perdeu mesmo. O teu PCP parece moribundo, vítima da falência incontestável do sonho comunista que alimentavas no teu imaginário. É certo que o país não está fantástico – continuamos pobres, desqualificados e sem imaginação – mas, ainda assim, mantém-se firme na sua filosofia de Estado liberal e capitalista, reflexo de um ocidente que não te inspirava sonhos de progresso e igualdade.
Porém, Zé – e vamos focar-nos nesta conjunção – porém, a boa notícia é mesmo muito boa. O 25 de Abril faz 50 anos! 50 anos, Zé!
O 25 de Abril sobreviveu ao tempo. Venceu e convenceu o povo. Está forte e quase unânime, num Portugal muito diferente (e muito melhor) do que o que conheceste em boa parte da tua vida. Continuamos livres. Pobres, mas livres! Donos de um destino que não será travado por nenhum lápis azul ou qualquer Campo de Morte Lenta.
E a malta gosta disto, Zé! Gosta mesmo… Nos próximos dias, (tirando um ou outro maluco) vamos andar todos de cravo na mão, cantiga no coldre e liberdade na boca, orgulhosos da disrupção de Abril e crentes na capacidade de transformação do futuro.
Mesmo sabendo todos que essa transformação é improvável, mesmo sabendo que “a paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação” continuam em falta, num quadro inacabado onde as tintas são insuficientes e o engenho é limitado, hoje, pelo menos, podemos ter esperança e acreditar que “pertencemos ao povo que o povo produziu”. Ganhámos, Zé! Ganhámos!
Um abraço do teu neto,
Bernardo
OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRRA
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