Opinião
Tolerância não é fechar os olhos
«Discordo das ideias ali expressas, mas é importante que elas possam ter espaço público». Esta frase e muitas variações no mesmo sentido foram bastantes vezes proferidas durante a passada semana – fosse por quem discorda profundamente das ideias expressas no livro “Identidade e Família” mas quer parecer tolerante, como por quem partilha o mesmo ideário mas tem vergonha de assumir que acha que o século XI foi um belo período para estar vivo.
Ao escutá-la(s), lembrei-me das palavras atribuídas a Voltaie e que ainda hoje ecoam como um mantra da liberdade: «Discordo do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres». Claro que o filósofo francês teve a sorte de não ser contemporâneo das redes sociais, onde ideias perigosas se propagam como chamas num campo seco, pelo que é possível que, se tivesse tido de passar uma ou duas horas a ler comentários em notícias na Internet, teria provavelmente acabado por cortar os próprios pulsos antes mesmo de terminar qualquer ensaio. E, caso tivesse resistido a esse impulso, é razoável pensar que teria acrescentado um «porém…» no final daquela frase.
Voltaire não teve também a possibilidade de conhecer o Paradoxo da Tolerância, formulado cerca de dois séculos após a sua morte pelo britânico Karl Popper, segundo o qual, para mantermos uma sociedade verdadeiramente tolerante, temos de ser intolerantes com a intolerância. O mesmo é dizer que, se permitirmos que ideias intolerantes se disseminem livremente, estamos a assegurar que elas acabarão por minar os próprios fundamentos da tolerância.
Pensemos, por exemplo, no livro “Mein Kampf” de Hitler. É perfeitamente razoável argumentar que o ideal de liberdade de expressão à luz do qual se deve defender a sua publicação e difusão será um dos primeiros a ser ameaçado perante o triunfo da ideologia nele contida. Se a liberdade de expressão deve ser considerada um valor a preservar, a possibilidade de ela ser usada como um escudo para propagar ideologias de ódio tem de levar-nos a, pelo menos, questionar o seu caráter absoluto.
O mesmo raciocínio se pode aplicar à disseminação de teorias da conspiração que alimentam o extremismo violento ou a discursos que incitam à discriminação e à violência, sem que com isto esteja a defender a censura ou que devamos sair por aí a queimar livros – isso era o que acontecia no tempo em que se achava que o lugar da mulher era na cozinha e hoje, em princípio, já não vivemos esse tempo. Mas permitir que ideias ostensivamente misóginas, homofóbicas ou racistas, por exemplo, cresçam sem oposição terá consequências desastrosas para a coesão social e para os Direitos Humanos mais básicos.
Paradoxalmente, opormo-nos a elas já foi mais fácil. O recurso a chavões como ‘woke’ ou ‘cultura do cancelamento’, invocando exemplos de exageros (quase sempre) de pequenos grupos para desvalorizar posicionamentos que mais não são do que decência básica, tem levado ao silenciamento efetivo de vozes dissidentes, como se criticar ideias intolerantes fosse uma afronta. Pelo contrário, fazê-lo significa abrir um espaço de debate, onde diferentes visões podem ser confrontadas, sem serem necessariamente colocadas no mesmo plano de razoabilidade. «Já não se pode dizer nada» é uma frase que fica bem na boca daqueles que querem poder dizer tudo contra os outros sem serem denunciados por aquilo que são.
Contra a cultura do ódio, pela defesa da democracia, temos de permanecer vigilantes e continuar a debater a liberdade e a tolerância, mas não podemos cair na armadilha de desligar essas conversas da luta pela justiça e pela igualdade.
OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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