Portugal

Manuel Maria Carrilho abre o livro sobre Guterres e Sócrates

Frederico Duarte Carvalho | 1 ano atrás em 09-02-2024

O antigo ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, publicou um livro-entrevista biográfico com o jornalista Humberto Simões, pela Grácio Editor, de Coimbra. Intitulado “Razões e Paixões”, entre outros assuntos, contém revelações sobre o tempo do governo de António Guterres e apreciações sobre José Sócrates que hoje adquirem um significado mais claro.

Deixou de ser ministro da Cultura em Julho de 2000, mas ao fim de duas décadas ainda é o nome que mais depressa associamos ao cargo. Manuel Maria Carrilho era um ilustre desconhecido da política nacional quando, em 1995, o primeiro-ministro socialista António Guterres o convidou para o cargo de ministro da Cultura, após ter vencido as eleições contra o líder do PSD, Fernando Nogueira, desgastado pelos oito anos de maiorias absolutas de Cavaco Silva.

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“Quando a televisão mostrou a composição do governo, o meu nome era o único a negro, sem uma fotografia”, lembrou o ministro durante a cerimónia de apresentação do livro-entrevista biográfica feito em conjunto com o jornalista de “O Correio da Manhã”, Humberto Simões, e editado pela Grácio Editor, casa editorial sedeada em Coimbra, cidade onde Carrilho nasceu, em 1951.

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A obra, apresentada em Lisboa, no Palácio Galveias, no dia 7 de Fevereiro, é o produto de quase 100 horas de entrevistas feitas entre Janeiro e Julho de 2023. O resultado traça um retrato do filósofo, político e homem de casos sociais polémicos, fruto do seu casamento com a apresentadora Bárbara Guimarães e que levou depois a processos judiciais.

A livro segue um percurso cronológico, com as recordações da infância em Viseu, onde o pai, Manuel Engrácia Carrilho, antigo governador civil e presidente da Comissão de Planeamento da Região Centro no tempo do Estado Novo, foi depois presidente da Câmara de Viseu, entre 1986 e 1989, com o apoio do CDS. “Foi de resto a única campanha com o CDS em que eu alguma vez participei”, recordou o antigo ministro do PS.

Após a formação em Filosofia, em Lisboa, Carrilho aderiu ao PS em 1986, por proposta de Jaime Gama. Nove anos mais tarde, com a entrada na política ativa, Manuel Maria Carrilho empreendeu um trabalho profundo no ministério da Cultura que, até à sua chegada, era sempre considerado um parente pobre de qualquer Governo. De facto, deve-se a ele a “institucionalização” deste ministério.

Carrilho, ao contar a Humberto Simões as circunstâncias da sua demissão, revelou alguns detalhes que levam à revisão de algumas certezas sobre a política nacional e, sobretudo, ao fim da passagem de António Guterres por S. Bento e à ascensão, mais tarde, de José Sócrates. Os factos políticos vistos na perspetiva do antigo ministro merecem ser lidos com atenção.

O ex-ministro da Cultura, que também foi superior hierárquico de Catarina Vaz Pinto – atual mulher de António Guterres, o agora Secretário-Geral da ONU –, recordou ao jornalista o amor que o líder do PS dedicava à primeira mulher, Luísa, que, infelizmente, adoeceu gravemente durante o primeiro mandato do Guterres e obrigava o primeiro-ministro a repetidas deslocações entre Lisboa e Londres, onde a mulher estava a ser tratada.

“Ele fazia tudo por ela. Imagina o que é estar num ‘Governo em Diálogo’, em Coimbra, e o António Guterres ir passar a noite com a mulher em Londres, onde ela estava internada, para retomar o trabalho no dia seguinte, em Coimbra?”, contou o antigo ministro da Cultura.

Após a morte de Luísa, a 28 de Janeiro de 1998, António Guterres não fez aquilo que o pai da psicologia, Sigmund Freud, chamou de “trabalho de luto” – “trauerarbeit” – e seguir em frente. De acordo com a opinião pessoal do filósofo, Guterres fez um “diferimento do luto”, que passou por agarrar-se “a uma ideia forte em que pôs toda a sua energia psíquica, e essa ideia foi a conquista da maioria absoluta” nas eleições legislativas previstas para daí a um ano, em Outubro de 1999.

O PS governava então em minoria relativa, mas tinha como líder do PSD, na oposição, o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que ia permitindo a aprovação dos orçamentos socialistas, garantindo assim a estabilidade do País. António Guterres, graças a isso, foi o primeiro governante do pós-25 de Abril a cumprir os quatro anos de uma legislatura completa com minoria no Parlamento.

Só que o resultado das legislativas de 1999 deram um empate de 115 deputados, deixando Guterres a um deputado da maioria absoluta. O efeito psicológico abalou as forças do líder do PS. Carrilho conta que Guterres surgiu depois “irreconhecível” e “a desistir de tudo”, disposto a “entregar tudo ao partido”, sendo o melhor exemplo disso, explicou o antigo ministro, a “inusitada” substituição de Sousa Franco por Pina Moura com a entrega de duas pastas fundamentais: Economia e Finanças.

O próprio Carrilho acabaria por ter uma “descrença” naquele novo governo e a falta de ânimo do primeiro-ministro “foi tão percetível para todos, que acabou por ter imensas consequências negativas”. O ministro da Cultura teve depois desencontros de contas com o ministro Pina Moura e quis demitir-se. Esperou até ao fim da presidência portuguesa da União Europeia, que terminou a 30 de Junho de 2000, e apresentou a carta de demissão na quinta-feira, 6 de Julho de 2000. Mas não a tornou pública nesse mesmo dia.

No dia seguinte, Guterres presidiu a um conselho de ministros que terminou cedo e convidou Carrilho para um almoço no restaurante Porto de Santa Maria, no Guincho, onde tentou convencer o filósofo a recuar na intenção de sair do Governo. Foi então que o ministro diz ter olhado o primeiro-ministro nos olhos e perguntou “se não era também o que ele queria fazer, ir-se embora”. Guterres não respondeu, mas ficou calado a “olhar para o infinito”.

Acrescenta o ex-governante socialista, ainda a propósito daquele momento em que confrontou o primeiro-ministro no restaurante do Guincho: “Mas eu já não tinha a mais pequena dúvida sobre isso, ele só estava à espera da oportunidade, do momento certo, ele depois preparou tudo para sair quando o Orçamento de Estado chumbasse, o que era dado como certo devido à relação de forças no Parlamento”.

Na sequência deste momento, Manuel Maria Carrilho afirma algo que, hoje, pode ser considerada como uma nova interpretação do que aconteceu meses depois, em Outubro de 2000: “E foi por isso que Jorge Coelho e o José Sócrates lhe armaram aquela vergonha do ‘queijo limiano’, do voto comprado a um deputado da oposição para viabilizar o orçamento”, adiando a demissão de Guterres.

Esta visão de Carrilho adquire uma atualidade histórica quando é cruzada com palavras do próprio António Guterres e escritas na biografia “Os Segredos do Poder”, editada em 2013 pela Aletheia Editores, assinada pelo jornalista Adelino Cunha. O antigo primeiro-ministro explica que a aprovação do orçamento para 2001, com a negociação da abstenção do deputado do CDS, Daniel Campelo, lhe pareceu uma “oportunidade caída do céu” que decidira aceitar “de boa-fé e em nome da estabilidade política para poupar ao País a umas eleições antecipadas.” E acrescentou então o atual Secretário-Geral da ONU: “Hoje estou convencido de que cometi um erro. Devia ter provocado uma crise política e precipitar uma clarificação”.

De acordo com Carrilho, Guterres não se demitiu em outubro de 2000 por causa da “vergonha” que Jorge Coelho e José Sócrates “armaram” contra a vontade íntima de um líder sem ânimo. E a tal “clarificação”, desejada e necessária, teve de esperar mais um ano, até dezembro de 2001, quando Guterres finalmente se demitiu após o desaire da noite das eleições autárquicas, em que o PS perdeu, entre muitas outras, as câmaras municipais de Lisboa, Porto e Coimbra.

Sobre a demissão de Guterres, o ex-ministro da Cultura apresenta ainda uma leitura politicamente alternativa em relação à expressão que ficou célebre nessa altura: “Pântano”. Guterres disse que se demitia para evitar o “pântano”. Carrilho explica agora o que, na verdade, o então primeiro-ministro quis dizer quando apareceu nas televisões “afogueado”, como se estivesse “a fugir de alguém”, a falar de um “pântano imaginário que nunca ninguém tinha visto, ou sequer sido falado”.

“Ninguém percebeu que o pântano era o dele, só dele, não tinha qualquer outra realidade, mas os nossos acéfalos jornalistas e comentadores cacarejantes engoliram a coisa como o Guterres – cem vezes mais inteligente que eles – sabia que eles engoliriam, e transformaram o pântano no ‘facto político’ do ano. Foi melhor do que Marcelo nos seus bons dias”, afirma Carrilho no livro “Razões e Paixões”.

Após a saída de Guterres, o então Presidente da República, Jorge Sampaio, convocou eleições antecipadas, vencidas por Durão Barroso, em Março de 2002. Não tendo obtido uma maioria absoluta, Barroso fez uma coligação com Paulo Portas, líder do CDS. Carrilho foi para deputado. Dois anos depois, Barroso deu o salto para a presidência da Comissão Europeia, logo após o Euro 2004. Sampaio não convocou eleições antecipadas e isso levou à demissão do então líder do PS, Ferro Rodrigues, e chegada de José Sócrates à liderança do partido do Largo do Rato.

“Nós fomos sempre adversários políticos, eu nunca vi nele mais do que um habilidoso arrivista político, sem convicções, pouco sério, uma nulidade em termos de visão ou de defesa dos interesses do País”, afirma o ex-ministro da Cultura sobre o antigo líder do PS e que foi primeiro-ministro de Portugal entre 2005 e 2011. Carrilho explicou ainda por que pode ter o direito a esta opinião tão negativa sobre um homem que agora está a braços com a Justiça: “Ideia que reforcei ao partilharmos o mesmo gabinete no Parlamento (eu, ele e o Guilherme de Oliveira Martins) durante mais de dois anos, durante o governo de Durão Barroso. O que então eu vi e ouvi, fez com que nada do que se veio a dizer mais tarde dele me tenha surpreendido. Nada.”

Muito mais poderá o leitor descobrir nas páginas de “Razões e Paixões”, mas, em jeito de palavra final, deixa-se aqui um pensamento filosófico que Carrilho cita várias vezes para o caracterizar e que é do filósofo francês Henri Bergson, prémio Nobel da Literatura de 1927: “Agir como um homem de pensamento, pensar como um homem de ação”.                    

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