Opinião

Parem de mentir às crianças

Notícias de Coimbra | 10 meses atrás em 01-02-2024

Peço antecipadamente desculpa pelo pessimismo desta  recordação – a semana está a ser difícil para mim – mas não  consigo deixar de lembrar que os pais mentem. Os pais  mentem muito, aliás. Passam boa parte da sua paternidade ou  maternidade a distribuir mentiras junto dos seus filhos  inocentes e crédulos. 

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Continuam, multiplicam-se, umas atrás das outras. Durante  anos, as mentiras vão-se acumulando no imaginário infantil  até a consciência e inteligência trazidas pela idade  conseguirem desmistificar cada uma delas. Lentamente, uma  a uma, elas vão caindo. 

Aos poucos, descobrimos que não existe nenhum velhote  rechonchudo e simpático, que se veste sempre de vermelho  em dezembro e que é mestre na arte de domesticar renas  voadoras; começamos a aperceber-nos de que o tio esconde  cartas debaixo da manga e de que toda aquela encenação em  forma de magia é só mais uma maneira de nos fazer passar  por parvos. 

Rapidamente, esquecemos a fada dos dentes e começamos a  acreditar no poder maléfico das cáries e do tártaro. E dói, dói  muito. Não tanto as cáries, mas as mentiras. É dolorosa a  transição para a realidade cruel, onde já não existem dragões,  feiticeiros e sabres de luz, onde ficamos reduzidos a pêlos nas  orelhas, cartas das finanças e despertadores matinais. 

Percebemos que até a Disney nos enganara. Afinal, os  corcundas não encontram amor, o nariz não cresce quando  mentimos e os bonecos não ganham vida quando saímos do  quarto — fico nervoso só de pensar no tempo  que desperdicei a tentar apanhar a minha bonecada em flagrante delito. 

O desgosto cresce ao ritmo da descrença. A certa altura, até a  água do mar nos vai parecendo diferente: mais inóspita, mais  fria, menos convidativa a banhos de que os nossos dedos  saem mais enrugados do que a testa de uma centenária. O que  antes nos proporcionava horas de deleite no meio  aquático, é agora uma espécie de tortura gélida inspirada nas  piores memórias de Guantánamo, a que só recorremos  quando sentimos a bexiga pressionada e a distância do WC  exige uma caminhada de 150 metros pela areia. 

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Em contramão, quem anda a viver bons tempos são os  meus primos, que foram pais muito recentemente. E ainda  um amigo, pai há três dias. Uma nova realidade para todos  eles que – não vou mentir – gera em mim uma inveja (ainda)  sadia. Enquanto tento gerir este feio sentimento, os  três preparam-se para iniciar o tradicional ciclo de mentiras,  na esperança de que estas protejam e aconcheguem  os seus frágeis rebentos. 

Provavelmente, assim que a compreensão dos petizes dê  sinais de vida, todos dirão a maior das mentiras aos seus  filhos: a mentira do amor incondicional. É certo que o amor  pode ser avassalador, desconcertante, hiperbólico e capaz de  nos fazer acreditar em Deus ou até mesmo na generosidade  da fada dos dentes. Mas não é incondicional. Mesmo o dos  progenitores. 

Não sou pai e, por isso, reservo a dúvida humilde de que a  falta de experiência na matéria possa enviesar a minha  opinião. Ainda assim, julgo que haverá algumas condições para que o meu filho possa contar com o meu amor. Não será  seguramente incondicional. Eu prometo que estarei  disponível para o amar com toda a minha força, tolerância  e generosidade, mas ele não pode abusar. 

De outra forma, com a garantia inequívoca de que o amarei  incondicionalmente, sentir-se-á à vontade para acumular os  piores dos defeitos. Quando der por mim, a doce criança que  gerei com tanto amor e expectativa terá degenerado num  crápula, palerma e vaidoso, um daqueles que acredita que a ingestão continuada de cenouras resulta em  olhos muito bonitos. 

Inês, André e Francisco, por favor não mintam às vossas  crianças. Deixem-nos acreditar que o Pai Natal não existe,  que os nossos dentes de leite não valem dois euros, que o  amor acaba – e que, no caso de corcundas, o mais provável é  que nem chegue a começar. 

Se Umberto Eco era sábio quando dizia que “nem todas as  verdades são para todos os ouvidos”, é justo afirmar que nem  todas as mentiras são para todos os ouvidos. Principalmente  para os ouvidos das crianças, bastante permeáveis a  aldrabices e otites.  

Por isso, poupem os vossos miúdos… É certo que a infância  deles será menos mágica, mas a vida adulta será bem mais  leve.

OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRA

Escreve à quinta-feira

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