Opinião
Parem de mentir às crianças
Peço antecipadamente desculpa pelo pessimismo desta recordação – a semana está a ser difícil para mim – mas não consigo deixar de lembrar que os pais mentem. Os pais mentem muito, aliás. Passam boa parte da sua paternidade ou maternidade a distribuir mentiras junto dos seus filhos inocentes e crédulos.
Continuam, multiplicam-se, umas atrás das outras. Durante anos, as mentiras vão-se acumulando no imaginário infantil até a consciência e inteligência trazidas pela idade conseguirem desmistificar cada uma delas. Lentamente, uma a uma, elas vão caindo.
Aos poucos, descobrimos que não existe nenhum velhote rechonchudo e simpático, que se veste sempre de vermelho em dezembro e que é mestre na arte de domesticar renas voadoras; começamos a aperceber-nos de que o tio esconde cartas debaixo da manga e de que toda aquela encenação em forma de magia é só mais uma maneira de nos fazer passar por parvos.
Rapidamente, esquecemos a fada dos dentes e começamos a acreditar no poder maléfico das cáries e do tártaro. E dói, dói muito. Não tanto as cáries, mas as mentiras. É dolorosa a transição para a realidade cruel, onde já não existem dragões, feiticeiros e sabres de luz, onde ficamos reduzidos a pêlos nas orelhas, cartas das finanças e despertadores matinais.
Percebemos que até a Disney nos enganara. Afinal, os corcundas não encontram amor, o nariz não cresce quando mentimos e os bonecos não ganham vida quando saímos do quarto — fico nervoso só de pensar no tempo que desperdicei a tentar apanhar a minha bonecada em flagrante delito.
O desgosto cresce ao ritmo da descrença. A certa altura, até a água do mar nos vai parecendo diferente: mais inóspita, mais fria, menos convidativa a banhos de que os nossos dedos saem mais enrugados do que a testa de uma centenária. O que antes nos proporcionava horas de deleite no meio aquático, é agora uma espécie de tortura gélida inspirada nas piores memórias de Guantánamo, a que só recorremos quando sentimos a bexiga pressionada e a distância do WC exige uma caminhada de 150 metros pela areia.
Em contramão, quem anda a viver bons tempos são os meus primos, que foram pais muito recentemente. E ainda um amigo, pai há três dias. Uma nova realidade para todos eles que – não vou mentir – gera em mim uma inveja (ainda) sadia. Enquanto tento gerir este feio sentimento, os três preparam-se para iniciar o tradicional ciclo de mentiras, na esperança de que estas protejam e aconcheguem os seus frágeis rebentos.
Provavelmente, assim que a compreensão dos petizes dê sinais de vida, todos dirão a maior das mentiras aos seus filhos: a mentira do amor incondicional. É certo que o amor pode ser avassalador, desconcertante, hiperbólico e capaz de nos fazer acreditar em Deus ou até mesmo na generosidade da fada dos dentes. Mas não é incondicional. Mesmo o dos progenitores.
Não sou pai e, por isso, reservo a dúvida humilde de que a falta de experiência na matéria possa enviesar a minha opinião. Ainda assim, julgo que haverá algumas condições para que o meu filho possa contar com o meu amor. Não será seguramente incondicional. Eu prometo que estarei disponível para o amar com toda a minha força, tolerância e generosidade, mas ele não pode abusar.
De outra forma, com a garantia inequívoca de que o amarei incondicionalmente, sentir-se-á à vontade para acumular os piores dos defeitos. Quando der por mim, a doce criança que gerei com tanto amor e expectativa terá degenerado num crápula, palerma e vaidoso, um daqueles que acredita que a ingestão continuada de cenouras resulta em olhos muito bonitos.
Inês, André e Francisco, por favor não mintam às vossas crianças. Deixem-nos acreditar que o Pai Natal não existe, que os nossos dentes de leite não valem dois euros, que o amor acaba – e que, no caso de corcundas, o mais provável é que nem chegue a começar.
Se Umberto Eco era sábio quando dizia que “nem todas as verdades são para todos os ouvidos”, é justo afirmar que nem todas as mentiras são para todos os ouvidos. Principalmente para os ouvidos das crianças, bastante permeáveis a aldrabices e otites.
Por isso, poupem os vossos miúdos… É certo que a infância deles será menos mágica, mas a vida adulta será bem mais leve.
OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRA
Escreve à quinta-feira
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