Opinião
Não tenho testosterona para isto
Não é fácil assumir isto, mas tenho de fazê-lo: às vezes gostava de ter mais testosterona.
Pronto, já o disse. É bom confessá-lo. Sinto-me como se tivesse tirado um enorme peso dos meus ombros. Tivessem os meus ombros mais testosterona e talvez conseguissem aguentar este fardo, mas a verdade é que não têm.
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Importa explicar que este não é um sentimento permanente em mim, um complexo que me acompanhe em todas as horas. Contudo, de quando em vez, lá estou eu, deprimido pelo sentimento de défice de testosterona que assola qualquer homem que se quer sentir mais homem. Que se quer afirmar como um Homem com H verdadeiramente maiúsculo, daqueles que manuseiam ferramentas com engenho e aplicam estrondosos murros em mesas ou queixos.
O mais triste é que nem preciso de sair de casa para que o “complexo de testosterona” — foi assim que o batizei — invada a minha psique. Basta um filme do 007. Bastam 90 minutos de ação em que o Bond, independentemente do seu intérprete, encha de pancada sete soviéticos encorpados e, mais tarde, acabe o dia a beber um Martini, sem qualquer arranhão, nódoa negra ou outro qualquer vestígio de violência no corpo. Isto chega para que eu seja confrontado com a minha impreparação masculina.
Será de facto um problema de testosterona? Será o meu corpo incapaz de produzir hormonas que me façam sentir tão viril quanto o Vin Diesel ou o Steven Seagal? Estarei eu condenado ao papel de homem fraco, sem capacidade para defender a sua donzela e resgatá-la num cavalo branco depois de partir uma dúzia de dentes a meia dúzia de vilões?
Fico paralisado nesta insegurança que me faz duvidar do meu potencial masculino. Um potencial que era até bem promissor, já que, tradicionalmente, eu até sou um gajo a sério. Um homem à antiga, com
as características singulares que Gonçalo da Câmara Pereira — o marialva que Luís Montenegro recrutou na Feira da Golegã — apreciaria. Sou um daqueles homens que adora ver bola e golos ao ângulo, que gosta de beber copos até às tantas, que se farta de comer até estar farto e que sabe desfrutar de (pontuais) momentos de flatulência entre amigos – tudo isto é de homem, só pode ser… já vivi o suficiente para saber que as mulheres não encontram boa galhofa na troca de bufas com as amigas mais próximas.
Este júbilo masculino piora, aliás, quando o meu carro me obriga a levá lo ao mecânico. Vou sempre contrariado e, muitas vezes, acompanhado pelo meu avô, um reformado que dedicou a sua vida à venda de peças de automóvel e que, inquestionavelmente, “sabe da poda”. Um simpático e enérgico octogenário que só perde as estribeiras quando vê umas jantes sujas, uma porta riscada ou uma bagageira carregada de pêlos de cão: “Isto é maneira de andar com carro, pá? Vocês não servem para nada, nem um carro conseguem manter. Ouve lá, tens mudado o óleo a isto? Não sabem tratar de nada…”.
As visitas pontuais ao meu avô acabam, assim, por se tornar relativamente agridoces, já que o aceno generoso com que ele me recebe é rapidamente transformado numa valente reprimenda. Chego a sua casa de sorriso no rosto e mãos no volante, imbuído do espírito altruísta do neto atencioso, e saio de lá açoitado, insultado, mergulhado numa autocomiseração humilhante que me faz sentir menos homem do que os outros meninos. É chato… principalmente por saber que muitos dos outros meninos cuidam do seu carro com a mesma estima e interesse que eu, mas têm a sorte de ter avós que, como eles, não são homens a sério e que, por isso, não os censuram.
Mas o meu avô é assim, um homem a sério, para quem a chegada à oficina, ao final da tarde de uma qualquer segunda-feira, é, de facto, um momento prazeroso. A visita ao mecânico — seu velho conhecido —, o contacto com as ferramentas, o cheiro a gasolina e o cumprimento com o antebraço para evitar o óleo que lhe enluva as mãos.
Tudo aquilo enche o depósito de masculinidade do meu avô, cuja generosidade não dispenso. Arranjar um mecânico honesto é tão importante como ter um contabilista “jeitoso com números” ou um advogado que seja “gente séria”. É coisa rara e não deve ser menosprezada.
E lá estamos nós, juntos, numa garagem localizada na periferia da cidade, durante um bom par de horas, à volta do carro defeituoso. Gradualmente, no meio do processo de diagnóstico, eventual reparação e pagamento pelo serviço, a tal testosterona vai aumentando de tom, numa frequência que cresce ao ritmo do relógio pendurado logo acima dos pneus carecas e estafados.
“Isto anda do piorio, pá. Você acredita que me pediram 4 contos por um casquilho de braço da suspensão?”, pergunta o meu avô. O interlocutor – um simpático mecânico que, de facto, inspira uma confiança invulgar – não o deixa sem resposta: “Então, não acredito!? O meu amigo não sabe como isto anda, ‘tá tudo a rebentar”.
Ficam nisto os primeiros 15 minutos, logo antes de começar o tradicional questionário sobre o bem-estar familiar. “Anda tudo bem. Pais, mulher, os meus filhos… ‘Tá tudo fino. O meu mais velho entrou agora em Informática. Ainda o chateei para ficar com o negócio, mas a malta de hoje não quer saber de nada disto. Não ligam nada aos carros”.
O desalento é imediatamente atenuado pela compreensão instintiva do meu avô: “Ó pá, não se arrelie com isso. Os meus netos são iguais, não percebem nada de nada, nem querem saber. Se eu pedir a este gajo para mudar uma lâmpada, ele desata a fugir”.
E lá fico eu, novamente encolhido, vergado pela vergonha, resignado ao meu complexo de testosterona próprio de quem não sabe distinguir um disco de uma pastilha de travão.
Para mim, os discos são para pôr na aparelhagem e as pastilhas são para pôr na boca. Por favor, deixem-me em paz! A mim e à minha pouca testosterona.
Opinião | Bernardo Neto Parra
(Escreve à quinta-feira)
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