Opinião
Municipalização do Ensino? Não Obrigado!
Quando se discute modelos de administração do sistema educativo é recorrente o discurso crítico contra o gigantismo burocrático do Ministério da Educação (ME) que reina a partir da 5 de outubro, cerceando e entorpecendo a autonomia das escolas.
Há quem, como Nuno Crato, tenha defendido a sua implosão pura e simples, acabando a reforçar os mecanismos centralizadores e a asfixiar a autonomia das escolas. Muitos são aqueles que defendem a sua demolição e reestruturação, dando lugar a uma territorialização da autonomia administrativa, assente na proximidade às comunidades.
Nesta perspetiva apontam-se dois caminhos qualitativamente diferentes: a municipalização do ensino ou o reforço efetivo da autonomia das escolas.
O mega edifício burocrático e administrativo do ME, distante das realidades locais/regionais e muitas das vezes alheado dos reais problemas das escolas, tem dificuldades de dar respostas adequadas e atempadas às necessidades e problemas que vão surgindo no quotidiano.
Porém, há que não deitar fora o menino com a água do banho. O ME, cumpre importante e imprescindível papel em algumas matérias cruciais, que não podem ficar ao sabor dos apetites locais/regionais, como sejam, entre outros, o desenho da matriz curricular nacional, embora com espaço para a autonomia das escolas, ou o sistema de avaliação, evitando o espartilhar dos mesmos e a criação de uma manta de retalhos geradora de desigualdades e incongruências. De igual modo a organização e implementação dos mecanismos de concurso e colocação de docentes, não pode deixar de ser feito à escala nacional, condição sine qua non para a transparência, isenção de processos concursais e a igualdade de oportunidades dos docentes, salvaguardando-os, nomeadamente, de critérios mais subjetivos e porventura menos transparentes, que poderiam acontecer à escala local.
Alguns dos que defendem a necessidade de demolir o mastodonte do ME, dando lugar a uma descentralização de base municipalista, fazemno, argumentando com uma maior proximidade às populações locais, que lhes conferiria maior capacidade de participação na definição das políticas educativas territorializadas. Seria, pois, uma forma de empoderamento social que potenciaria dinâmicas de açãoparticipação cidadã, aumentando a democracia local. Em tese, pareceme um bom e desejável caminho a fazer.
Tudo o que for no sentido de conferir aos cidadãos e às comunidades, maior capacidade de participação democrática, de envolvimento ativo e de coresponsabilização nos processos de decisão que dizem respeito às suas vidas é positivo e deve ser incentivado.
Porém, o modelo de descentralização de base municipalista apresenta vários problemas, suscitando muitas e compreensíveis objeções de princípio, nomeadamente, por parte daqueles que, como eu, defendem uma descentralização com base numa maior autonomia e responsabilização das escolas, envolvendo a comunidade.
Conferir aos poderes locais mais um poder, não despiciendo, de contratar docentes, constitui uma porta aberta aos clientelismos locais. E, pior, ainda, pode potenciar práticas de discriminação de docentes, que, por equidistância política e autonomia de ação não se coadunem com projetos políticos locais, abrindo as portas ao reino da arbitrariedade e da prepotência.
Quando se confere aos municípios a competência de determinar 25% da estrutura curricular, a possibilidade de estes, se constituírem como plataforma empregadora, não é despicienda, contribuindo para aumentar as pressões e tentações clientelares locais.
Com efeito, sabemos que nem sempre prevalece a transparência e democraticidade dos processos de concurso. Não é negligenciável a potencial permeabilidade ao fator cunha, à cor política e ao cartão de militante.
Lamentavelmente, a tomar como exemplo, quer as práticas da administração central, quer as das autarquias, tantas vezes constituídas como agências de colocação e promoção de boys and girls dos aparelhos partidários, as nossas apreensões farão todo o sentido.
Por outro lado, a prática de muitos dos municípios, no que diz respeito ao emprego em áreas que são da sua competência, como sejam as Atividades de Enriquecimento Curricular (AEC’s) ou pessoal auxiliar de ação educativa, demonstra-nos a preferência pela contratação com vínculos precários ou até mesmo a exploração despudorada de Contratos de Emprego Inserção (CEI), promovendo a ocupação de postos de trabalho permanentes, por trabalhadores sem contratos nem direitos, fomentando a precariedade e a pobreza.
Exemplo preocupante e bem ilustrativo do sentido da municipalização do ensino almejada pelo poder instalado é a intencionalidade de oferecer aos municípios a possibilidade de embolsarem 13 600 euros, por cada educador ou professor que, em nome de uma suposta eficiência, consigam dispensar. Medida de mero alcance economicista sem qualquer preocupação com a qualidade da escola. Ainda que nos digam, que essa cláusula, secretamente negociada com alguns municípios que irão iniciar a experiência foi retirada, tanto quanto sabemos, terá caído devido às críticas que alguns municípios terão feito à mesma, tal é a barbaridade de uma tal proposta. Porém, a intenção e o acenar de incentivos aos municípios, para a redução da despesa com a educação está lá intacta e prevalece. Enquanto se desvaloriza e desinveste na escola pública favorece-se e financia-se o negócio do setor privado que, na maior parte dos casos, concorre diretamente e de forma desleal, com a oferta pública, duplicando a despesa de Estado.
O empoderamento dos cidadãos e das comunidades traz, desejavelmente, mais capacidade de participação aumentando a democraticidade dos processos, aproximando os poderes e potenciando a ação intervenção numa perspetiva transformadora das relações sociais, culturais e de poder, por isso são desejáveis.
É por isso que defendemos uma outra perspetiva de descentralização de competências e de poderes, assente na maior autonomia e responsabilização das escolas e coresponsabilização das comunidades.
Compete às escolas, em cujos órgãos de gestão e administração já se encontram representados todos os elementos da comunidade educativa, incluindo a autarquia, encontrar os melhores caminhos para a construção e consecução dos seus projetos educativos, sem os freios nem condicionamentos impostos de cima, de forma arbitrária para toda a escola pública, mas não para todo o sistema educativo. Com efeito, as escolas privadas, muitas das quais, indevidamente financiadas por dinheiros públicos dispõem de total autonomia para gerirem os seus recursos financeiros, técnicos e humanos, o mesmo não acontecendo nas escolas públicas. O que, à partida, ainda cava mais as desigualdades e discrepâncias entre os dois sistemas: privado, com total liberdade e autonomia de ação e público com liberdade tolhida e autonomia amordaçada.
Descentralizar e territorializar as políticas educativas, conferindo maior capacidade de decisão e autonomia às escolas e às comunidades, sim!
Municipalizar o ensino, favorecendo lógicas de clientelismo local, que podem potenciar o controlo político das escolas, pelos caciques locais, desvirtuando a sua autonomia, não!
SERAFIM DUARTE
Membro da Coordenadora Distrital de Coimbra do Bloco de Esquerda
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