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A dor de uma mãe pelas filhas vítimas de abusos em orfanato timorense que não as protegeu
Com lágrimas nos olhos, a mãe diz que desmaiou quando soube que as suas filhas mais novas, ainda crianças, tinham sido vítimas de abusos sexuais por um ex-padre católico num orfanato em Timor-Leste, onde lhes fora prometida proteção.
“Quando me contaram não aguentei. Desmaiei. Tiveram que me ajudar”, conta a mulher, viúva há vários anos e mãe de mais de uma mão cheia de filhos, em declarações com a Lusa.
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Duas das crianças são alegadas vítimas do ex-padre norte-americano Richard Daschbach, acusado de abuso a inúmeros menores, ao longo de anos, no orfanato Topu Honis, em Oecusse.
Hoje, a mãe refugia-se no anonimato e quer evitar possíveis retaliações ou que o drama que as filhas viveram em crianças as persiga o resto da vida.
O segredo cúmplice ao longo de anos de quem sabia dos abusos, primeiro, algumas ameaças a vítimas depois, e agora a vergonha com que a sociedade timorense, por vezes, penaliza mais as vítimas que os agressores, constitui uma dificuldade para expor os casos.
E apesar de haver inúmeras famílias afetadas, a vergonha e o medo têm dado as mãos para calar os alegados crimes que, segundo a acusação, foram cometidos a sucessivos grupos de crianças ao longo de anos e anos.
A mãe destas duas vítimas tinha uma vida como outras famílias das vítimas é caracterizada pela precariedade, pelas péssimas condições de vida, pelas carências económicas e pela falta de condições para cuidar das crianças.
As vítimas deste caso – o primeiro do género envolvendo alguém da igreja (entretanto expulso do Vaticano) -, foram as famílias mais vulneráveis de algumas das zonas mais isoladas do enclave.
Se a situação da família já era complicada – a vida em Timor-Leste ainda é difícil para uma fatia significativa da população – a morte do marido só intensificou os problemas e esta mãe viu-se, de repente, a braços com a necessidade de cuidar de tantos filhos e sem fontes de rendimento.
“Fiquei muito à rasca”, conta, usando em tétum a expressão portuguesa que se tornou um termo comum no dia-a-dia em Timor-Leste. “A situação económica era muito difícil e não conseguíamos arranjar dinheiro”.
Enquanto tentava sobreviver, primeiro a vender alimentos nos mercados, ou a lavar roupa e limpar casas, foi visitada por Daschhbach que se ofereceu para levar algumas das meninas para o orfanato.
“Ele veio falar comigo e ofereceu para levar algumas meninas. Prometeu que teriam comida e roupa e escola. Eu primeiro disse que não, que não era preciso. Mas ele voltou várias vezes e eu depois disse que sim, e entreguei as duas mais novas”, explica.
“Elas eram muito pequenas, mas nós tínhamos uma família grande e eu acreditei nele. Toda a gente acreditava”, recorda.
A família do marido tinha-lhe dado um pequeno apoio depois da morte do homem e mãe tentou desenrascar-se como podia, a cozinhar e a vender comida na rua, depois como fan tutan (vendedora de produtos de terceiros) e finalmente como comerciante.
Uma vida complicada em que conseguia, nos bons meses, 50 dólares, parte dos quais tinha que destinar a pagar a educação do filho mais velho.
“Estava mais descansada porque as mais novas estavam no [orfanato] Topu Honis. Aos outros eu tinha que pedir paciência porque não tinha carne ou vegetais, tínhamos que pagar a escola do mais velho”, recorda, com a voz marcada pela emoção.
O pouco que conseguia eram para as despesas mais básicas e, por isso, as condições na sua casa, já precária, foram-se degradando e agora “chove lá dentro”. Sem o ferry a chegar regularmente a Oecusse e com mais restrições devido à covid-19, os rendimentos são ainda mais difíceis de obter.
Antes, toda a gente olhava bem para o ex-padre, que “ajudava as pessoas, as crianças”, e por isso muitos confiavam.
“E eu também tinha essa opinião até ouvir o que aconteceu. Elas contaram que ele dormia com as meninas, do 3.º ano até ao 6.º ano. Eu entreguei as minhas filhas a confiar que ele as ia ajudar e no final esse fez isso com as meninas”, explica.
Depois, quando os contornos e a dimensão do caso se começaram a conhecer, vieram as pressões, com “os adultos do orfanato a dizer que as meninas não podiam contar nada, que tinham que ter fechado nelas o que tinha acontecido”.
“Sinto muita raiva. Se fosse uma cobra ia lá mordê-lo”, declara.
“E isto aconteceu a todas as meninas. As minhas filhas disseram que acontecia a todas. Mas ninguém falava nada”, disse.
Por isso, esta mãe também se calou: “Nem disse aos outros filhos”.
“É melhor para o futuro das meninas as pessoas não saberem quem são e o que aconteceu. A sociedade coloca muita vergonha nas meninas e contar isto pode ser mau para elas no futuro”, confessa.
Com sucessivas demoras e atrasos no julgamento – a próxima audiência está marcada para segunda-feira –, esta mãe diz-se “muito triste e doente com isto tudo” e quer que Daschbach vá “responder pelo que fez”.
O julgamento está previsto continuar no Tribunal Distrital de Oecusse na segunda-feira.
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