Saúde
Geringonça: Crise no SNS abalou Governo e insatisfação não abrandou com troca de ministro
Os últimos quatro anos de governação na saúde foram marcados pela crise no SNS, que foi sendo cada vez mais assumida pelos profissionais e por uma troca de ministros incapaz de travar a crispação no setor.
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A discussão em torno da nova Lei de Bases da Saúde, a greve cirúrgica dos enfermeiros e a sindicância pedida pela ministra Marta Temido à Ordem dos Enfermeiros foram outras questões que ocuparam o tempo mediático sobre o setor da saúde.
Muitas reformas ficaram por concretizar e a atividade governativa foi marcada por “inércia” e baseada em “gestão corrente”, como o Observatório Português dos Sistemas de Saúde concluiu no Relatório da Primavera apresentado este mês.
A contestação dos profissionais de saúde, que custou a substituição do ministro Adalberto Campos Fernandes em outubro de 2018, foi sendo progressiva ao longo da legislatura e não parou com a entrada de uma nova ministra.
Aliás, um mês depois de estar em funções, Marta Temido foi confrontada com uma greve inédita de enfermeiros, que paralisou blocos operatórios em vários hospitais do país, com os profissionais a serem suportados por donativos recolhidos ‘online’ e que lhes permitiu ainda convocar uma segunda paralisação semelhante no início deste ano.
Esta “greve cirúrgica” levou a trocas de acusações entre membros do Governo e enfermeiros, com a ministra a classificar a paralisação como cruel e a contestar a postura da bastonária da Ordem, Ana Rita Cavaco.
Aliás, na sequência de declarações públicas da bastonária sobre a “greve cirúrgica”, a ministra decidiu pedir uma sindicância à Ordem dos Enfermeiros, processo que ainda não teve conclusões.
Foi também a “greve cirúrgica” a desencadear outro braço de ferro com os profissionais de enfermagem, levando o Governo a decretar uma requisição civil para travar o segundo período da paralisação em blocos operatórios.
A crispação estendeu-se também às estruturas representativas dos médicos. O bastonário da Ordem dos Médicos foi assumindo um papel de porta-voz das denúncias de insuficiências do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que são manifestadas por clínicos de todo o país.
Até meados da legislatura, o Ministério respondia a cada denúncia com a justificação de que se tratava de um “caso pontual”, mas esses casos foram-se acumulando.
Os médicos foram frisando que o SNS estava já a ultrapassar a linha vermelha, apontando para um défice de milhares de especialistas.
O aumento do número de profissionais tem sido o principal argumento do Governo para contrariar as queixas das várias classes. Os dados oficiais mostram que o SNS teve um acréscimo de quase 11 mil profissionais desde 2015.
Contudo, a Ordem dos Médicos já veio lembrar que, mesmo que em termos absolutos haja mais profissionais, a “força de trabalho” não registou acréscimo: há menos médicos em exclusividade – uma opção que deixou de existir em 2009 – e também uma população médica mais envelhecia, que pode deixar de fazer urgência a partir dos 55 anos.
Enquanto isso, tem aumentado a carga de doença, sobretudo devido ao envelhecimento populacional, bem como o grau de exigência dos próprios utentes.
Os problemas são transversais a todo o país, segundo a Ordem, mas tem havido dificuldade em corrigir a falta de profissionais qualificados fora dos grandes centros urbanos.
As queixas de défice de profissionais não se limitam a médicos e enfermeiros. Até os farmacêuticos dos hospitais, uma classe tradicionalmente pouco denunciante, tem vindo a alertar para a falta de pessoal, pondo em causa a segurança de algumas farmácias dos hospitais públicos.
A passagem às 35 horas de trabalho semanais, uma das promessas cumpridas pelo Governo, foi encarada por ordens profissionais como contribuindo para agravar a carência de recursos humanos. Farmacêuticos e enfermeiros alegaram que não houve planeamento adequado e que não se contrataram os profissionais suficientes para suprir a passagem das 40 para as 35 horas.
Para tentar contrariar os críticos, o Governo mostra que a atividade do SNS cresceu: entre o final de 2015 e o final de 2018 foram feitas mais 589 mil consultas nos centros de saúde, mais 184 mil consultas hospitalares e as cirurgias apresentaram um crescimento mais modesto, mais 18 mil.
Mas o desempenho do SNS tem mostrado problemas nas listas de espera e no cumprimento dos tempos máximos de resposta considerados clinicamente aceitáveis, onde tem havido agravamentos.
O Ministério da Saúde reforçou o número de portugueses com médico de família, mas falhou a meta de atribuir a todos os utentes um clínico, como constava do programa do Governo. Dados de junho mostram que há cerca de 700 mil portugueses ainda sem médico de família, com o executivo a estimar que até ao final da legislatura esse número se reduza para 300 mil.
Em termos de indicadores, Portugal mantém-se entre os países com maior esperança de vida, mas no último ano houve uma ligeira regressão dos indicadores de mortalidade materna e infantil.
Dos últimos anos, ao nível dos indicadores de saúde, destacou-se o VIH/sida, com Portugal a ter alcançado a meta definida pela ONUsida para 2020: 90% dos infetados com diagnóstico, 90% dos diagnosticados em tratamento e 90% dos que são tratados com carga viral indetetável.
Na reforma hospitalar, praticamente tudo ficou por fazer, como também constata o Relatório da Primavera 2019 do Observatório dos Sistemas de Saúde, que ainda assim entende que os indicadores globais de saúde mostram um “SNS bem melhor que muitos querem fazer crer”.
Neste documento, assume-se que o SNS estaria em pior situação se não fosse a pressão externa da sociedade civil e dos profissionais de Saúde.
Foram quatro anos pródigos em manifestos, apelos públicos e denúncias no setor, levando até à criação de um movimento espontâneo de profissionais, o “SNS in Black”, que usa essencialmente as redes sociais para tentar exibir a realidade do sistema, em contraponto ao mundo oficial “do Excel e do PowerPoint”.
Mesmo com o apoio dos partidos de esquerda ao Governo, nem tudo foi pacífico a nível parlamentar. Os dois ministros da Saúde desta legislatura foram chamados dezenas de vezes à comissão parlamentar de Saúde para explicar medidas, problemas ou constrangimentos do SNS.
Aliás, no parlamento, a proposta de Lei de Bases de Saúde do Governo criou fricções à esquerda, com o BE e o PCP contra a gestão em parceria público privada (PPP) das unidades do SNS.
A referência às parcerias público privadas acabou por desaparecer do documento, num acordo entre a maioria de esquerda que remete a questão para regulação futura, num prazo de seis meses, dos termos em que é exercida a gestão pública, com a revogação do decreto-lei de 2002 que enquadra as PPP.
A Lei de Bases da Saúde foi aprovada na sexta-feira no parlamento, mas terá de ser ainda promulgada pelo Presidente da República.
Para trás ficou a polémica passagem do Infarmed de Lisboa para o Porto. Anunciada pelo então ministro Adalberto Campos Fernandes, depois de o Porto ter perdido a candidatura a receber a Agência Europeia do Medicamento, levou a forte contestação dos trabalhadores e da própria presidente do Infarmed.
O Governo acabou por recuar e deixou cair a proposta de transferência da sede da Autoridade Nacional do Medicamento.
Ana Rute Peixinho| Lusa
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