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Filme testemunha “Viagem ao Sol” de crianças austríacas em Portugal no pós-guerra

Notícias de Coimbra com Lusa | 2 anos atrás em 19-11-2022

 “Viagem ao Sol”, documentário em competição no Porto/Post/Doc, depois de distinguido em Bolonha e Sevilha, parte de imagens e filmes caseiros de época, para contar a história de crianças austríacas enviadas para Portugal após a II Guerra Mundial.

Os realizadores, Susana de Sousa Dias e Ansgar Schaefer, em entrevista à agência Lusa, notam preferencialmente o modo como o filme, também em competição no festival Caminhos do Cinema Português, em Coimbra, tem sido bem recebido pelo público, em sala, e não tanto os prémios.

Além de uma menção especial do júri no Archivio Aperto, em Bolonha, seguiu-se o prémio de Melhor Filme de Não Ficção Novas Vagas, no Festival de Sevilha, depois de ter sido distinguido no festival IndieLisboa, no passado mês de maio.

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“A receção do filme… as pessoas, na sala, normalmente ficam muito afetadas. É impossível ver aquele filme e ficar indiferente”, explica Ansgar Schaefer.

A expectativa de um “documentário convencional” do público, sugere Susana de Sousa Dias, é errada, apesar de o tema, assente nas histórias de algumas das centenas de crianças austríacas que vieram então para Portugal, poder indiciar um registo mais televisivo.

“É um filme que vai questionar não só uma história, mas utilizando também o material de arquivo, dando grande relevância à imagem. É só testemunhos e imagem de arquivo. As pessoas pensam que iam ver um documentário mais convencional e ficam extremamente surpreendidas, porque o documentário é tudo menos convencional. Positivamente surpreendidas”, explica a realizadora.

A história mostrada “tem autonomia”, considera a cineasta, alicerçando-se nas vozes e testemunhos, que acompanham o material de arquivo, para poder ter “várias camadas de leitura”.

“As pessoas reagem muito ao filme. De tal forma que não necessariamente se exprime em questões e perguntas, mas mais na próxima reação psicológica. As pessoas ficam afetadas pelo filme, pela história humana, e pelo seu eco atual. Da atualidade, o eco para o passado. Como vemos aqui uma continuidade tão grande?”, questiona Ansgar Schaefer.

Começaram a trabalhar no filme em 2017, depois de uma ideia que já tinham desde os anos 1990, e a guerra na Ucrânia veio trazer para cima da mesa de novo “uma terrível atualidade” à obra, lamenta Susana de Sousa Dias.

O historiador Ansgar Schaefer, por seu lado, lembra uma apresentação em que colocou lado a lado imagens do filme, com as pessoas retratadas na obra no contexto de guerra, e atuais da Ucrânia, em preto e branco, e “as pessoas não se aperceberam, porque é tal e qual”.

Este exemplo, diz Schaefer, evidencia como “os traumas da guerra, a falta de relevância das crianças, colocadas em situação de guerra”, não mudaram com o tempo.

Esta colaboração entre ambos, que “se aprofundou com este filme”, não pretende “contar uma história do passado”, mas antes ver como este “chega ao presente”, entre uma “dimensão de intemporalidade” e a ressonância com a atualidade.

“Quando nós fizemos o filme, é sempre por essa perspetiva. Nunca é ir ao passado, descobrir uma verdade qualquer, ir ao encontro do que aconteceu. É ver como o que aconteceu é recordado no presente. São dois movimentos contrários. Por isso é um filme que vai ressoar de formas diferentes”, explica Susana de Sousa Dias.

Ansgar Schaefer, por outro lado, recorda como em 2017 esta atualidade que ressoa era a crise de refugiados na Síria, numa altura em que ainda não sabiam que iam trabalhar com material caseiro, familiar e outras imagens.

“Só no desenvolver da própria investigação em encontrar aquelas imagens, que não existiam antes” essa possibilidade se tornou evidente. “Setenta, quase 80% das imagens que temos aqui foram descobertas por nós, tanto fotografias como o ‘found footage’, dando aquele toque especial, porque são filmes feitos pelas famílias”.

Encontraram “caixas cheias de bobines”, que digitalizaram, fotografias de família e outros pequenos registos que vão parar ao filme, e que inclui também “imagens oficiais, usadas como propaganda pelo Estado Novo”, mas retiradas do seu contexto, também pela ausência da narração.

A ditadura do Estado Novo, lembra o historiador, procurou ‘balizar’ estas crianças que chegavam ao país como refugiadas de um conflito que já tinha terminado, enquadrando isto como uma história de sucesso do regime, com muitas notícias e eco dado ao caso.

Esta história surgiu de uma investigação sobre judeus em Portugal e, já em 2015, encontra contemporaneidade na crise de refugiados. Os dois começaram então a contactar pessoas e a filmá-las. Foi aí que elas “começaram a trazer os álbuns”, para lhes mostrar, e não pararam de trazer, “surgiram mutio mais”.

“O que é interessante é que quando começamos a ver as imagens – e os filmes que temos feito têm [essa vertente] – é a entrar sempre dentro da imagem”, conta a cineasta, dando como exemplo uma obra anterior que dirigiu, “Natureza Morta”. É um processo que acaba por permitir “ver o que está para além da propaganda, do que o regime [a ditadura] quer fazer passar”.

Entre as fotografias, que “também obedecem a códigos” e têm, quase todas, um enquadramento “mediado por um olhar masculino”, o pai de família, vão-se encontrando mais camadas para lá da superfície, do registo de faces, sobretudo “na fase de montagem” do documentário.

“Percebermos que as pessoas tinham imensas memórias da infância, e surpreendeu-nos o quão vivas eram as memórias, que eram memórias da Guerra”, conta.

Ansgar Schaefer aponta para como “70 anos depois, as pessoas recordam os pormenores”, e Susana de Sousa Dias revela que esta “grande clareza” faz, ao longo das entrevistas filmadas que levaram a cabo, com que “a criança comece a aparecer” no lugar do adulto.

“Quando falam da guerra, é como se estivessem lá, crianças. No filme, decidimos aproveitar esses momentos de criança. E percebemos que elas viram muita coisa”, na guerra e depois em Portugal.

Essa “realidade que não entra nas narrativas oficiais” vai culminar num dos pontos altos do filme, sobre a penetração da propaganda em todos os aspetos da sociedade portuguesa, mas também na forma como muitos dos entrevistados seguem ‘ligados’ ao mundo e aos assuntos.

“Estas pessoas com quem falamos são pessoas especiais, com uma vivacidade incrível. O mais incrível é quando falam dos novos namorados. Uma das senhoras fala muitas vezes do namorado, que diz: ‘Vi o meu bebé ali no ecrã’. O ‘bebé’ tem 80 anos”, conta.

“Viagem ao Sol”, uma produção da Kintop, terá estreia comercial em Portugal no início de 2023, e será exibido nl domingo no Porto/Post/Doc, no Cinema Trindade.

Susana de Sousa Dias e Ansgar Schaefer têm trabalhado de forma consistente na criação de documentários que partem de arquivos históricos e que abordam questões com ligação à atualidade. São exemplos disso filmes como “Fordlandia Malaise” (2019), sobre o projeto falhado de uma cidade industrial, fundada por Henry Ford na floresta amazónica em 1928, para aceder a novas fontes de borracha, e “Luz obscura” (2017), construído sobre fotografias de detidos pela polícia política da ditadura portuguesa (1926-1974), abordando relações familiares, memória e esquecimento.

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